Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo XVI

Imergimos num silêncio quase absoluto, interrompido pelo ladrar intermitente de um cão de guarda do rebanho de ovelhas de Dom Baldo. Era um cão simpático que ladrava com bons modos e só o necessário. Pressentiria o aproximar de alguém ou de algum animal ou seria apenas para se distrair. Curioso, subiu ao cimo de um penedo para dali poder observar melhor o que se passava à sua volta.

Uma cigarra que estava pousada num pinheiro nas nossas imediações, acordada pelo ladrar do cão, quis mostrar o seu desagrado entoando um canto estridente e incomodativo para as pessoas e os animais.

Interrompeu o seu canto quando um bando de aves se aproximou para pousar na mesma árvore e, se pudesse, devorá-la. Não por qualquer ressentimento, mas somente por uma questão de sobrevivência. Insectos daquele tamanho davam uma boa refeição para uma ave grande e várias refeições se a ave fosse pequena.

Indiferentes a tudo isto, as formigas em filas intermináveis carregavam o cereal da eira para o seu celeiro.

Trazido pelo sol e pelo vento começou a ouvir-se o tropel de animais de carga e da música agradável das suas campainhas, o qual vinha dos lados da Fonte da Saúde, situada num desfiladeiro cujas profundezas dali não se viam. Apesar da distância o som ouvia-se nitidamente, devido ao eco produzido nos rochedos de ambos os lados do vale estreito. Rochedos aqueles compostos de variados tipos de rocha que se combinaram entre si de diversas formas, dando um brilho cintilante como se estivessem em movimento. Estas gigantescas rochas escarpadas apresentavam-se enrugadas, tal como as rugas da testa de uma pessoa com mais de cem anos. Seriam as marcas da sua idade ou da pressão exercida por algum gigante para lhes dar aquela forma. De qualquer modo eram acolhedoras: ali faziam o ninho as grandes aves planadoras, as aves de menor porte e ali se refugiavam as cabras selvagens, quando perseguidas pelos lobos. Os lagartos de diversas cores e tamanhos aí habitavam nas suas tocas, e passeavam-se ao sol para se aquecerem e caçar insectos, os quais se confundiam com a cor variada da rocha e do seu musgo. 

Ouvia-se também o falar de duas pessoas, um rapaz e uma rapariga, vindo do mesmo lugar, juntamente com o murmúrio da água da fonte.

Nisto, o Aníbal e a Alzira, que eram vizinhos de Dom Baldo, saíram apressados de casa e vieram ao nosso encontro bem atentos ao que de novo se passava. À frente chegou o Aníbal com duas crianças pela mão, o Armando e o António Júlio, e atrás vinha a Alzira com uma menina ao colo chamada Maria da Graça. Não demoraram a surgir na Portela duas pessoas a cavalo, um rapaz e uma rapariga, os quais vinham na nossa direcção. O rapaz usava polainas pretas, calças e camisa brancas, um colete azul e uma espada à cinta.

À Alzira parecia-lhe que eram o seu filho e a mulher deste, os quais viviam em Freixo de Espada à Cinta. Esperámos que se aproximassem. Tratava-se de uma caravana de cinco animais: os dois da frente transportavam o rapaz e a rapariga e os restantes malas e cestos com laranjas do pomar da Ventosa.

A Alzira e o Aníbal trataram o rapaz por Ademar, e a rapariga por Maria Eugénia. Esta trazia uma novidade: estava grávida e se a criança fosse um rapaz queria que se chamasse Arlindo. Prenderam os animais a umas pedras ao alto, à frente do palheiro do José Paulo, a uns cinco ou seis passos de nós. O Ademar ia tirando laranjas dos cestos transportados por um dos animais e descascava-as com uma pequena espada que trazia à cinta, com a marca de uma oficina de Vale de Ferreiros. Distribuiu-as pelas pessoas presentes, uma a uma, assinalando que eram muito doces e que curavam as constipações. Os contemplados comiam-nas devagar e com grande cerimónia. Depois lambiam os lábios para que nada se desperdiçasse. As cascas davam-nas aos cavalos. Impressionaram-me as boas maneiras daquelas pessoas. Provavelmente aprenderam-nas com o Fidalgo.

O Aníbal, surpreendido com a doçura e os aromas das laranjas, pediu ao filho que lhe comprasse a laranjeira que desse frutos idênticos àqueles para a plantar no seu pomar da Fonte da Saúde. Quando já não o pudesse cultivar ficaria para ele. Plantaria a laranjeira mesmo ao lado da fonte, de modo a ficarem ligadas uma à outra. A laranjeira e as laranjas beneficiariam da qualidade da água da fonte. A Fortuna, que usava como símbolo um ramo de laranjeira florido, augurava que as nuvens trariam sempre chuva. A fonte nunca se secaria, renovar-se-ia sempre e a laranjeira também. Haveria sempre um amanhecer depois de cada entardecer. As laranjas teriam a cor do sol ao entardecer e ao amanhecer.

O Ademar e a mulher negociavam em tecidos de linho, de seda e lã, tendo aprendido a profissão de mercadores quando viviam em Viana da Foz do Lima. Eram amigos do judeu que estava junto de nós. Tratavam-no por Albino. Este, que tinha uma filha para casar, logo mostrou interesse em ver a mercadoria que traziam nas arcas. Gostou das colchas de seda e de linho e depois de muito regatear o preço sinalizou a compra de algumas peças com moedas de ouro.

O Ademar deu voltas ao fundo de uma das arcas, transportada por um dos cavalos. Dali tirou uma guitarra de braço comprido, chapéu e capa pretos idênticos aos que usava o Albino. Depois de pedir licença pôs o chapéu na cabeça e vestiu a capa.

Despertou a minha curiosidade o facto de o Ademar, não sendo judeu, usar um chapéu daquele estilo, e uma capa judaica. Provavelmente estaria convencido que um seu antepassado longínquo era judeu ou então traria aquele traje para o vender nas feiras. De qualquer maneira relacionava-se bem com o Albino e a Eugénia, e acabou por afirmar que conhecia uma filha daquele, chamada Raquel, da qual era amiga.

A pedido do judeu o Ademar tocou lindamente uma canção antiga e bastante conhecida enquanto aquele a cantava tão bem que nos causou grande emoção. Depois cantaram os dois juntamente e a Eugénia tocava um tambor e dançavam em círculo. Nesta situação, ambos com trajes idênticos e a cantarem e a dançarem juntos, afigurou-se-me que se pareciam um com o outro, ou seria imaginação minha.

O Ademar, quando ia com a sua caravana às feiras, tocava esta e outras canções por prazer e para atrair o povo, e depois procurava vender-lhe as suas mercadorias.

Da letra da canção recordo-me apenas que repetia muitas vezes a ideia de que haviam de voltar.

Não se sabia ao certo qual o significado da ideia de voltar da canção. Talvez não passasse da imaginação do poeta que a escreveu. Ou seria um poeta judeu que desejaria voltar a Israel ou interpretaria um sentimento comum dos judeus de regressar à terra dos seu antepassados.

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