Imergimos num
silêncio quase absoluto, interrompido pelo ladrar intermitente de um cão de guarda do rebanho de ovelhas de Dom Baldo. Era
um cão simpático que ladrava com bons modos e só o necessário. Pressentiria o
aproximar de alguém ou de algum animal ou seria apenas para se distrair. Curioso,
subiu ao cimo de um penedo para dali poder observar melhor o que se passava à sua
volta.
Uma cigarra que
estava pousada num pinheiro nas nossas imediações, acordada pelo ladrar do cão, quis mostrar o seu desagrado entoando um
canto estridente e incomodativo para as pessoas e os animais.
Interrompeu o seu
canto quando um bando de aves se aproximou para pousar na mesma árvore e, se pudesse, devorá-la. Não por qualquer
ressentimento, mas somente por uma questão de sobrevivência. Insectos daquele tamanho
davam uma boa refeição para uma ave grande e várias refeições se a ave fosse
pequena.
Indiferentes a tudo
isto, as formigas em filas intermináveis carregavam o cereal da eira para o seu celeiro.
Trazido pelo sol e
pelo vento começou a ouvir-se o tropel de animais de carga e da música agradável das suas campainhas, o qual vinha dos
lados da Fonte da Saúde, situada num desfiladeiro cujas profundezas dali não se viam.
Apesar da distância o som ouvia-se nitidamente, devido ao eco produzido nos rochedos
de ambos os lados do vale estreito. Rochedos aqueles compostos de
variados tipos de rocha que se combinaram entre si de diversas formas, dando um brilho
cintilante como se estivessem em
movimento. Estas gigantescas rochas escarpadas
apresentavam-se enrugadas, tal como as rugas da testa de uma pessoa com mais de cem anos.
Seriam as marcas da sua idade ou da pressão exercida por algum gigante para lhes dar
aquela forma. De qualquer modo eram acolhedoras: ali faziam o ninho as grandes aves
planadoras, as aves de menor porte e ali se refugiavam as cabras selvagens, quando
perseguidas pelos lobos. Os lagartos de diversas cores e tamanhos aí habitavam nas
suas tocas, e passeavam-se ao sol para se aquecerem e caçar insectos, os quais se
confundiam com a cor variada da rocha e do seu musgo.
Ouvia-se também o falar de duas
pessoas, um rapaz e uma rapariga, vindo do mesmo lugar, juntamente com o murmúrio da
água da fonte.
Nisto, o Aníbal e a
Alzira, que eram vizinhos de Dom Baldo, saíram apressados de casa e vieram ao nosso encontro bem atentos ao que de
novo se passava. À frente chegou o Aníbal com duas crianças pela mão, o Armando e o António
Júlio, e atrás vinha a Alzira com uma menina ao colo chamada Maria da Graça. Não
demoraram a surgir na Portela duas pessoas a cavalo, um rapaz e uma rapariga, os quais
vinham na nossa direcção. O rapaz usava polainas pretas, calças e camisa brancas, um
colete azul e uma espada à cinta.
À Alzira parecia-lhe
que eram o seu filho e a mulher deste, os quais viviam em Freixo de Espada à Cinta. Esperámos que se aproximassem.
Tratava-se de uma caravana de cinco animais: os dois da frente transportavam o rapaz e a rapariga e os restantes malas e
cestos com laranjas do pomar da Ventosa.
A Alzira e o Aníbal
trataram o rapaz por Ademar, e a rapariga por Maria Eugénia. Esta trazia uma novidade: estava grávida e se a criança
fosse um rapaz queria que se chamasse Arlindo. Prenderam os animais a umas pedras ao
alto, à frente do palheiro do José Paulo, a uns cinco ou seis passos de nós. O Ademar
ia tirando laranjas dos cestos transportados por um dos animais e descascava-as com
uma pequena espada que trazia à cinta, com a marca de uma oficina de Vale de
Ferreiros. Distribuiu-as pelas pessoas presentes, uma a uma, assinalando que eram muito
doces e que curavam as constipações. Os contemplados comiam-nas devagar e com
grande cerimónia. Depois lambiam os lábios para que nada se desperdiçasse. As cascas
davam-nas aos cavalos. Impressionaram-me as boas maneiras daquelas pessoas. Provavelmente
aprenderam-nas com o Fidalgo.
O Aníbal,
surpreendido com a doçura e os aromas das laranjas, pediu ao filho que lhe comprasse a laranjeira que desse frutos idênticos
àqueles para a plantar no seu pomar da Fonte da Saúde. Quando já não o pudesse cultivar ficaria
para ele. Plantaria a laranjeira mesmo ao lado da fonte, de modo a ficarem ligadas
uma à outra. A laranjeira e as laranjas beneficiariam da qualidade da água da fonte. A
Fortuna, que usava como símbolo um ramo de laranjeira florido, augurava que as
nuvens trariam sempre chuva. A fonte nunca se secaria, renovar-se-ia sempre e a laranjeira
também. Haveria sempre um amanhecer depois de cada entardecer. As laranjas teriam a
cor do sol ao entardecer e ao amanhecer.
O Ademar e a mulher
negociavam em tecidos de linho, de seda e lã, tendo aprendido a profissão de mercadores quando viviam em Viana
da Foz do Lima. Eram amigos do judeu que estava junto de nós. Tratavam-no por
Albino. Este, que tinha uma filha para casar, logo mostrou interesse em ver a mercadoria
que traziam nas arcas. Gostou das colchas de seda e de linho e depois de muito
regatear o preço sinalizou a compra de algumas peças com moedas de ouro.
O Ademar deu voltas
ao fundo de uma das arcas, transportada por um dos cavalos. Dali tirou uma guitarra de braço comprido, chapéu e capa
pretos idênticos aos que usava o Albino. Depois de pedir licença pôs o chapéu na cabeça e
vestiu a capa.
Despertou a minha
curiosidade o facto de o Ademar, não sendo judeu, usar um chapéu daquele estilo, e uma capa judaica. Provavelmente
estaria convencido que um seu antepassado longínquo era judeu ou então traria
aquele traje para o vender nas feiras. De qualquer maneira relacionava-se bem com o Albino
e a Eugénia, e acabou por afirmar que conhecia uma filha daquele, chamada Raquel, da
qual era amiga.
A pedido do judeu o
Ademar tocou lindamente uma canção antiga e bastante conhecida enquanto aquele a cantava tão bem que nos causou
grande emoção. Depois cantaram os dois juntamente e a Eugénia tocava um tambor e
dançavam em círculo. Nesta situação, ambos com trajes idênticos e a cantarem e a
dançarem juntos, afigurou-se-me que se pareciam um com o outro, ou seria imaginação
minha.
O Ademar, quando ia
com a sua caravana às feiras, tocava esta e outras canções por prazer e para atrair o povo, e depois procurava vender-lhe
as suas mercadorias.
Da letra da canção
recordo-me apenas que repetia muitas vezes a ideia de que haviam de voltar.
Não se sabia ao certo
qual o significado da ideia de voltar da canção. Talvez não passasse da imaginação do poeta que a escreveu. Ou seria um
poeta judeu que desejaria voltar a Israel ou interpretaria um sentimento comum dos
judeus de regressar à terra dos seu antepassados.
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