Dom Baldo de Martim Tirado e o seu palácio de uma torre - Capítulo VI

Ao final da tarde chegámos a Carviçais. Da feira que naquele dia ali se realizava já restava pouco. Os nossos animais contornaram a igreja para ao fundo desta beberem no tanque de uma nascente. Tivemos que aguardar em fila que as pessoas que estavam à nossa frente se abastecessem daquela água, num tanque reservado para elas, e se refrescassem molhando a testa com a água que elevavam nas conchas das mãos. Fiz o mesmo, e esta experiência deu bom resultado. Além de me refrescar, a água tirou-me as dores de cabeça. Aquela fonte era famosa por causa desta particularidade. As pessoas consideravam aquela água benta por passar debaixo da igreja. Além disso, para reforçar os seus poderes curativos e purificadores, também era benzida pelo padre, de sete em sete dias. Eu sabia que a água benta se deitava na cabeça das crianças para as purificar na cerimónia do baptismo, mas não sabia que também se podia beber. Também não tinha conhecimento de que ela tivesse feito mal a quem porventura a tivesse bebido por descuido ou intencionalmente. É certo que se dizia que presunção e água benta cada um podia tomar a que quisesse. Porém, aqui a palavra tomar não era entendida no sentido de a beber ou de alguém se purificar, mas pelo contrário, de alguém querer fazer crer que valia muito quando na realidade valia pouco ou quase nada.

Chamavam-lhe a Fonte Santa de Carviçais, para a distinguir de outra que existia no município de Mogadouro. Nisto sucedeu uma coisa surpreendente: depois de o jumento beber daquela água, o seu olho amarelo transformou-se em olho normal, facto que foi presenciado por bastantes pessoas. Toda a gente ficou assombrada com o que viu e com medo de que alguma coisa estranha lhes pudesse acontecer. Olhavam com pavor umas para as outras para verem se a vista de alguma delas tinha virado amarela. Entretanto o padre, que ia da sua residência para a igreja, depois de ouvir contar o sucedido, admitiu que no olho amarelo do jumento estivesse metida uma feiticeira ou o espírito desta. Terá fugido devido à água que o jumento bebeu ser benta, ou devido à sua aproximação. 

Marcámos dormida na hospedaria da praça e metemos os nossos animais na cavalariça. Ali, de modo discreto, pedimos informações sobre se havia notícia dos salteadores.

Por devoção entrámos na igreja pela porta principal, virada para poente, estando já a decorrer a missa. O padre fez uma longa homilia sobre um monge pintor e guerreiro do castelo da Cigadonha, cujo enterro se realizou naquele dia. Foi ele quem pintara o tecto da igreja onde nos encontrávamos, dando especial importância a um monte com sete patamares em círculo que significava o Purgatório. Um deles ficou inacabado. 

As pessoas subiam os patamares carregando fardos às costas, não se sabendo o que tinham dentro. À medida que subiam, os fardos diminuíam de tamanho. Chamou-me a atenção a existência de diversas árvores com frutos parecidos com as laranjas, maçãs e as uvas, nas colunas do altar. Talvez aquela fruta fosse para oferecer às pessoas como prémio do sacrifício que fizeram para chegarem ao cimo do monte e para prosseguirem a sua viagem.

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