Primeiro dia - recordações

almofadas bordadas pela minha avó

A Clementina chama-me para ver dumas coisas. Adianto um pouco da conversa com o empreiteiro e logo me junto a ela, que me espera junto às casas com as mãos uma na outra, em cunha. Um jeito apressado de ser, ela. Queria falar-me dos móveis da casa dos meus avós. Móveis muito bons, ainda muito bons, corrige. Nem quando lhe mostro a gaveta que não abre ela hesita. Muito bons, sim senhora. Não os quer pôr lá na casa nova?, ora então não há de pôr, se ainda estão bons. Passamos à cozinha. Dou-lhe razão com uma base de panela de metal. Posso usá-la. Isso não, as tijelas, sim, são bonitas, mas não, Clementina. Tenho de escolher bem as coisas, aquilo é para turismo, sabe. Pareceu olhar-me desolada. Então. Então por que não há de usar isto, são móveis caros, valem muito.

Procuro algo longe da atenção dela. Olhe, já viu este frigorífico, está impecável. Você já viu, fazia-me jeito lá na minha casa. Isto? Então num está bom, está bom é para você pôr na casa nova, ora vai lá estar a gastar dinheiro num frigorífico novo. Ia para lhe reafirmar do turismo, sabe, quando reparo nas rendas. Almofadas decoradas com rendas coloridas, um mimo que a minha avó nos deixara. Olhe bonito é isto. Será que dá para remendar? Tá tudo roto, isto foi do quê? Isto foi dos ratos, ai o raio da bicharada, entraram por aí e roeram tudo. Os patifes, se isto se faz a alguém.

Compreendo-a. Tudo o que luz aos olhos da Clementina é esconso e chato para mim, e vice-versa. Deixo-a e às suas lamúrias por um momento e começo a recolher as almofadas. Algumas desfazem-se com o toque. Culpo as minhas mãos. Ao vê-las alinhadas sobre o palanque da casa, como que alunos de uma turma à espera da foto de conjunto, penso no pouco que a minha avó me legou, deixado erodir pelo tempo e pelos ratos, e com que facilidade fica a sua vida assim esparramada num balcão de cimento.

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