Um palácio entre as montanhas e o céu


Este terno conto foi escrito pelo meu pai, António Júlio Lopes, que não soube melhor maneira de me mostrar o seu carinho do que escrever uma ficção sobre a sua terra, Martim Tirado, e sobre o nosso projeto comum, a Quinta dos Baldo. Muito lhe devo. Obrigado, pai.



"De madrugada, antes do amanhecer, saí de Torre de Moncorvo e deixei o meu cavalo seguir o caminho assinalado pelas estrelas. Atrás de mim ia o meu ajudante, o soldado Botelho, com um jumento valente, mas um pouco enfermo por causa do reumatismo que lhe atacava uma pata, especialmente durante aquele tempo da lua cheia.
A nossa missão era combater os salteadores que pela noite roubavam e maltratavam as pessoas no território compreendido entre Torre de Moncorvo e Freixo de Espada à Cinta.
Constava que poucos dias antes em Vale de Ferreiros uns salteadores tinham roubado um fidalgo de Martim Tirado. Roubaram-lhe um cavalo e o dinheiro que levava e deixaram-no maltratado. O seu nome não se pode dizer agora. Será conhecido mais adiante quando tratarmos da sua história invulgar. Tudo deve ser dito a seu tempo.

Os salteadores mais perigosos que se conheciam eram os da quadrilha da Serra de Mós, os quais tinham sido condenados por terem matado um homem e por vários roubos. Encontravam-se evadidos da prisão e andavam por ali a assaltar as pessoas.
Percorridas umas três léguas, perto das minas do Carvalhal, atravessávamos uma densa floresta de carvalhos negral, castanheiros e pinheiros e nisto avistámos uns vultos de pessoas com animais, que fugiam de nós, sem sabermos se eram os salteadores ou se eram pessoas pacíficas que pensavam que os salteadores éramos nós.
Apesar da dúvida, o Botelho queria investir contra elas, dada a sua valentia, a vontade de se tornar famoso, o sentido exagerado do dever profissional e por ter ouvido dizer, quando andava na tropa, que quem prestasse bons serviços na nossa profissão poderia ser promovido a comandante ou a governador. Disse-lhe que segundo o nosso regulamento em caso de dúvida não se deviam atacar as pessoas. Por isso nada fizemos.
Depois de passarmos por um povo chamado Carviçais, tocou o sino da sua igreja, para a missa ou para um baptizado. O sol abriu as suas portas e então pude ver ao longe, entre as montanhas e o céu, a Quinta do Fidalgo de Martim Tirado, a qual distava dali umas cinco léguas, seguindo pelo caminho do Canamor. Tive que esperar um pouco, porque o meu ajudante atrasou-se.
Entretanto pus-me a observar aquelas montanhas, parecendo-me que estavam pintadas. Era uma coisa admirável. Porém, o Botelho explicou-me que não estavam pintadas, mas cobertas de um manto multicolor de arbustos e árvores, sobretudo rosmaninho, giesta, esteva, pinheiros, castanheiros, amendoeiras e oliveiras.
Tomámos o caminho do Canamor e logo entrámos num bosque de sobreiros, onde vimos algumas pessoas conhecidas do Botelho, a tirar a cortiça daquelas árvores, que naquele sítio serviam para fazer colmeias e barcos para transportar sonhos.
Avistámos perto de nós as ruínas de uma vila romana, numa colina. Fiquei assombrado com uma luz azul que as ligava em arco à copa dos sobreiros da mata que acabámos de atravessar. A cor azul da luz misturada com a cor verde dos sobreiros dava uma cor verde claro cujo matiz não era conhecido na natureza. Nunca tinha visto nem ouvido falar de coisa semelhante. O Botelho primeiro dizia que não via nada, talvez por estar virado para o sol. Persignou-se e mudou de direcção. Então exclamou maravilhado que aquilo era um milagre ou uma coisa extraordinária do outro mundo. Louvado seja Deus! Não se ficou a saber se o Botelho passou a ver o que não via antes, por ter mudado de direcção ou por se ter persignado. Talvez estivesse em pecado e ao persignar-se terá expulsado o demónio, bruxedo ou coisa parecida que o impedia de ver. Poderia estar a ver coisa diferente do que eu via por se ter persignado.
Tinha dúvidas sobre se o arco da luz partia das ruínas romanas em direcção aos sobreiros, ou se partia destes em relação àquelas. Aproximámo-nos das ruínas e então pudemos ver que a luz partia de um altar romano, que estava no cruzamento de caminhos. Tudo indicava que a luz provinha do interior da rocha do altar. A ser assim estávamos a assistir a um milagre. Além disso até então ninguém tinha falado naquela luz. Aproximámo-nos mais e então eram visíveis uns veios azuis na pedra ou pedra azul incrustada de tal modo que nem se notava.
Poderia a luz azul ser o reflexo daqueles veios e não vir do seu interior. Mas não constava que até então alguém tivesse visto aquela luz. O Botelho explicou que aquele altar tinha sido desenterrado uns dias antes, o qual estaria muito sujo da terra que o cobria. No dia em que ali chegámos choveu muito, a chuva terá limpado o altar e então passou a brilhar. Mudámos o altar numa direcção que não recebia directamente os raios do sol. A luz azul continuava a sair do altar mas um pouco menos intensa. Poderia receber a luz solar indirectamente, que era muito intensa, naquele sítio. Poderia ser também o espírito de um ou vários romanos que tendo fugido do purgatório vagueavam pelo mundo.
Nisto vimos uma mulher velha de luto a aproximar-se de nós com uma vassoura na mão. O Botelho dado o seu carácter impetuoso e a ambição de ganhar fama, em vez de falar com a mulher, logo considerou que ela era uma bruxa perigosa, pegou na lança e foi na sua direcção com o objectivo de a agredir ou trespassar se necessário. A mulher ou bruxa ao aperceber-se das intenções daquele logo desatou a correr e desapareceu de forma misteriosa atrás de uns penhascos. Teria razão o Botelho ao considerá-la bruxa? Se era bruxa teria usado a vassoura para voar e não o fez. Talvez não o tenha podido fazer porque o Botelho usava na lança um crucifixo benzido pelo bispo de Vila Real.
Com boas intenções admiti mais tarde como possível que a vassoura que a mulher trazia fosse de giesta que ali colheu e a levasse para varrer a sua casa. Ou talvez fosse devota do culto romano e fosse ali para comunicar com os seus antepassados.
Entretanto pousou um corvo nos sobreiros que recebiam a luz do altar romano, o qual dizia coisas que não se percebiam bem. Fiquei com a ideia de que eram insultos dirigidos ao Botelho. Talvez fosse a mulher que anteriormente perseguiu com a lança e se tenha transformado em corvo. Via-se no seu rosto que estava amedrontado com os previsíveis poderes do corvo. Ficámos sem saber o que se passou. Só os sacerdotes poderão desvendar o mistério.
Pouco tempo depois chegámos a uma necrópole com sepulturas escavadas na rocha e outras no chão.
Segundo os arqueólogos, perto de ali houve uma igreja cristã e aquelas sepulturas pertenciam-lhe, cujo santo de apelido Cristóvão protegia as pessoas em viagem, quer durante a vida, quer depois da morte. Desde tempos remotos viveu ali gente e quis deixar gravado na rocha o seu modo particular de viver, a sua cultura, e transmiti-la às gerações futuras. Sem aquelas rochas escavadas e sem os artefactos ali existentes provavelmente nem saberíamos que aquele lugar foi povoado. Emocionei-me ao pensar que ali poderiam ter vivido alguns dos meus antepassados e que teriam sido enterrados naquelas pedras escavadas. Então desci do cavalo e curvei-me em homenagem àquele povo. O meu ajudante fez o mesmo sem saber porquê, talvez para imitar o seu comandante, cargo que muito gostaria de ocupar.
Noutros tempos muitas pessoas seguindo a crença popular acreditavam que as mouras viviam naquelas construções e que as sepulturas tipo masseira escavadas na rocha eram o lugar onde elas amassavam o pão. Naquelas sepulturas e noutras à sua volta estaria enterrado ouro em panelas de barro e outros recipientes. Esta crença estará ligado a um fenómeno natural: perto dali havia um vale onde se produzia eco, que era considerado a voz da moura. A moura chorava e chamava pelos filhos que ali perdeu.
Então os caçadores de tesouros, na busca do ouro abriram aquelas sepulturas e outras escavadas no chão. Não se sabe se encontraram os tesouros procurados. O certo é que por ganância destruíram grande parte das ruínas romanas.
Aproximámo-nos de uma ribeira chamada Vilela, para beber da sua água limpa. Os cágados que estavam ao sol sobre umas pedras, ao darem conta da nossa presença submergiram lentamente na água, onde nadavam em círculos, provavelmente por influência dos astros.
Perto de ali havia um colmeal com colmeias de cortiça, cercado por um muro alto de pedra, de forma circular, com remates salientes para o exterior semelhantes aos anéis de Saturno e uma porta pequena, tudo para proteger as colmeias da acção dos predadores, entre eles os ursos.
As abelhas saíam e chegavam às colmeias a grande velocidade, descrevendo círculos, num zumbido permanente, com o néctar para fazerem o mel. Maravilhou-me este comportamento e acreditei que o faziam não só por necessidade, mas também por prazer. Fiquei contente de ver aqueles pequenos animais tão felizes.
A uns cem passos dali havia um moinho de água. Via o seu rodízio que girava em torno de si próprio com a força da água e lançava-a com ruído em todas as direcções.
O moleiro, chamado Gabriel, natural de Fornos, acabava de chegar com duas cargas de trigo.
Resolvi parar um pouco.
Esfomeados, o meu cavalo e o jumento do Botelho comiam a erva fresca das margens da ribeira.
Sentei-me à sombra de um olmo perto de uma laranjeira com laranjas maduras. Chamei pelo Botelho para trazer os alforges a fim de comermos as provisões que ali tínhamos. Uma pedra servia de mesa e duas outras de bancos. Com a comida bebemos um vinho tinto produzido na região da Vilariça. Era de tão alta qualidade que via as serras andarem à nossa volta, a ribeira a correr em sentido contrário, o moinho inclinado quase a cair em cima do moleiro e o colmeal e a cerca no ar a girar à volta de si próprio quase em cima de nós. Passados uns instantes já tinha dúvidas se era o colmeal que girava quase em cima de nós ou se era a lua cheia. Só o vinho não poderia gerar uma situação tão fantástica. Talvez fosse qualquer interferência da luz do altar romano ou de algum espírito da necrópole de São Cristóvão.
Deitei-me na erva e logo adormeci. Tive um sonho surpreendente.
Encontrei-me no outro mundo tal como sou, vivo, sem saber como lá cheguei.
Então, estava sentado à sombra fresca de uma árvore com uma copa de folhas azuis e frutos perfumados e de boa pinta, muito parecidos com as laranjas de Mazouco. A copa da árvore fez-me recordar a abóbada da Igreja de Carviçais.
Tinha alguma fome e apetecia-me comer aqueles frutos. Porém, não toquei em nenhum, porque tive a premonição de que não era permitido a ninguém comê-los sem merecê-los. Eu merecia comê-los? Não sabia. Tinha dúvidas. Pior do que isso poderia a serpente maldita ter-se transformado naqueles frutos.
Entretanto começou a chover. Não tinha capote. Assim pensei que ia molhar-me. Surpreendentemente as folhas da árvore beberam toda a chuva, sem cair uma gota sobre mim, nem sobre o solo.
Depois a luz era tão clara e afectuosa que eu já não necessitava de mais nada. Então ou me esqueci da fome ou me passou. Talvez me terá passado, porque quando estamos tranquilos quase não necessitamos de comer e de beber.
Tudo isto me pareceu fantástico em comparação com aquilo que se passava e ainda se passa na terra.
Na minha frente passava um rio que levava água abundante, a qual era mais pura que aquela que nasce na fonte Castalia em Monte Parnasso, onde se purificavam e creio que ainda se purificam as ninfas antes de se acercarem de Apolo para tocar umas músicas em sua honra.
Pus-me a observar um cenário belíssimo que se encontrava na margem daquele rio contrária àquela em que eu estava.
Um homem que tinha aspecto de santo estava sentado num trono dourado, fazia de juiz ou era juiz de profissão. Segurava numa das suas mãos uma balança de dois pratos e na outra uma espada. À sua frente estava um livro aberto. Donde me encontrava não podia ler o que estava escrito em tal livro. Apesar disso, acreditei que ali estivessem escritas as leis do céu ou pelo menos as de Moisés.
Pelo rio de que falei iam barcos à vela carregados de gente em direcção àquele trono, devagar, porque o vento era pouco. Os barcos eram parecidos com aqueles que circulavam no rio Douro no lugar da Congida.
As pessoas acercavam-se do trono. Esperavam que o juiz as chamasse, umas sentadas e outras de pé porque as cadeiras não eram suficientes para todos. Algumas delas tinham os rostos tranquilos e outras mostravam-se um pouco nervosas. Daquelas pessoas só conhecia uma, o Horácio de Mazouco.
Acordei bruscamente com os gritos de um homem e o ladrar de um cão que vinham dos lados do moinho. Era o moleiro que se queixava do meu cavalo e do jumento do Botelho, porque lhe tinham comido umas verduras na sua horta e duas quartas de cereal que se encontravam em frente do moinho. Com um pau e a ajuda do cão afugentava os nossos animais. O jumento fugia como se não tivesse reumatismo.
Disse-lhe que tínhamos o direito de aboletamento, dada a nossa profissão, coisa que ele não sabia o que era e tive que lhe explicar. Não iríamos utilizar este nosso direito. Prometi-lhe que mais tarde lhe daria três quartas de cereal. Duas para compensar o que os nossos animais haviam comido e uma para pagar as verduras. Além disso, faríamos de conta que não sabíamos que o seu cão não tinha licença.
Censurei o Botelho por em vez de guardar os nossos animais e vigiar os nossos inimigos ter adormecido. De facto segundo as regras da nossa profissão quando o comandante dorme o ajudante deve estar vigilante para todas a eventualidades, no nosso caso para a aproximação dos salteadores.
Respondeu-me que aquele vinho era demasiado forte para beber ao almoço.
Depois seguimos a nossa viagem. Íamos ambos calados, situação que era muito aborrecida para mim. Então pedi ao Botelho, que era natural de Martim Tirado, para falar da historia do Fidalgo e da sua Quinta.
Segundo o meu ajudante, algumas pessoas diziam que o Fidalgo, de apelido Baldo, teria enriquecido com o negócio do minério. Comprá-lo-ia na Fonte Santa ou na Quinta das Pereiras e vendê-lo-ia aos espanhóis perto da fronteira de Freixo de Espada à Cinta. Tudo em segredo. Isto não está comprovado. Só é seguro que ele tinha uma mina de ferro da ladeira da Odreira.
Havia outras pessoas que diziam que não se enriqueceu com o negócio do minério, mas com uma fortuna herdada de um tio de sua mulher que era judeu e viveu em Macedo de Cavaleiros.
O bruxo de Meirinhos – pessoa muito mentirosa – dizia que o Baldo encontrou um cordeiro de ouro, em tamanho natural, quando escavava a terra para plantar uma árvore no lugar do Canamor.
De qualquer maneira havia sinais de grande riqueza. Trocou os seus jumentos por cavalos na feira dos Gorazes em Mogadouro, comprou uma quinta, a qual mais tarde passou a chamar-se quinta do Fidalgo Baldo, onde mandou construir um palácio para sua habitação com uma torre o qual em tamanho e qualidade era o melhor daquele lugar e das redondezas. Além disso comprou dois rebanhos de ovelhas e contratou dois rapazes para as guardar e outros rapazes para cultivar a sua quinta. Passou a vestir-se como um nobre. Mudou também o seu apelido de Estanqueiro para Baldo. Este apelido era usado pelo Conde de Vimioso.
Um indivíduo da Quinta da Macieirinha chamado Joaquim disse-me que viu o Dom Baldo na feira de Mogadouro a trocar os seus jumentos por cavalos dos mais caros que havia e a pagar em dinheiro a grande diferença entre o valor dos primeiros e dos últimos.
Então as pessoas do seu povo e dos povos vizinhos passaram a tratá-lo por Fidalgo Baldo ou Dom Baldo. Creio que estes títulos não eram oficiais. Terá sido ele que os pôs a si próprio.
Em dia de tanto calor despertou-nos a atenção o murmúrio da água de uma fonte. Mas não a víamos, talvez devido a umas árvores que se encontravam à nossa frente ou a algum penedo. No cruzamento os nossos animais por sua iniciativa viraram na sua direcção. Era a fonte dos Couços, famosa pela pureza e frescura da sua água, tal como a da Fonte da Saúde.
Nisto ouviu-se uma pessoa a cantar. O canto era alegre e suave. Surpreendeu-nos não podermos saber donde vinha a voz, talvez devido ao eco que fazia no vale. Enquanto falávamos no assunto, vimos que uns ramos de uma figueira se mexiam, sem que houvesse vento ou que se visse qualquer pessoa que os fizesse mexer. A situação era estranha. Por precaução empunhámos as nossas armas. O Botelho gritou: apresente-se o cantor ou o fantasma. Então saiu de trás de um muro um rapaz conhecido do Botelho o qual era genro da Rosa e do Silvério que andava ali com um cesto a colher figos e uvas. Nesse momento deixou de se ouvir cantar e os ramos da figueira já não mexiam. Seria ele quem anteriormente cantava e mexia nos ramos da figueira.
Entretanto chegaram várias pessoas à fonte, para dar de beber aos animais e transportar água. No dorso dos animais traziam uns cestos de vime com cântaros de barro. As mulheres usavam lenços na cabeça, as mais novas de cores variadas e as mais velhas de cor preta, segundo a tradição.
Subimos todos juntos a ladeira. Quando já estávamos perto do palácio de Dom Baldo, mandei o meu ajudante prender os nossos animais a um olmo e que fosse ao comércio comprar dez reis de cevada fresca para lhes dar.
Olhei novamente para o palácio quando estava a uns cinquenta passos de distância, o qual pela sua originalidade me causou espanto e admiração. Uma casa tão nobre nesta serra! Nem acreditava que fosse real o que estava a ver. Era um palácio fantástico.
As paredes eram de pedra. As pedras eram invulgares, todas diferentes e de grande beleza.
Pareceu-me que tinham vida e que se moviam em varias direcções, algumas mais rápidas e outras mais devagar, de acordo com a sua inclinação, outras estavam dormindo, outras associavam-se formando barcos à vela, esta de tela fina, que transportavam a nossa imaginação em direcção às estrelas ou até aos mistérios da origem do universo.
Como era possível não chocarem umas com as outras! Talvez a Providência o quisera assim ou porque apesar de serem todas diferentes tinham o mesmo valor ou elas tinham um poder desconhecido que evitava a colisão.
Quando estava mais perto tive a impressão que elas se moviam num lago de águas limpas e pouco depois não tinha dúvidas de que era mesmo água boa para beber, como aquela das fontes mais famosas. Então apareceu uma donzela encantadora a cantar, com um vestido da cor do fogo, sentada numa pedra que flutuava na água, a qual se transformou numa mulher a fiar com uma roca à cinta e uma pedra à cabeça. Pôs a pedra no chão, a qual passou a jorrar água como se fosse uma fonte. Acreditei que de acordo com lendas antigas aquela água fosse milagrosa e que pudesse curar a minha doença e a do jumento. Aproximei-me para a beber e encher um cântaro de barro. Surpreendentemente ao tocar nas pedras a figura e o cenário desapareceram. Então lembrei-me do que havia lido no livro sagrado, o Alcorão, que é mais ou menos assim: ninguém deve tocar numa mulher muçulmana, a não ser o seu marido. Afastei-me das paredes e logo continuou a cena interrompida. Sem tocar nas pedras enchi o cântaro do jorro da água da fonte.
Um pouco mais distante pareceu-me que as pedras andavam no espaço cósmico, semelhantes aos cometas e depois com o girar do sol algumas brilhavam como as estrelas e outras espalhavam uma luz suave como a da lua cheia. Talvez fossem mensageiras das estrelas e da lua.
Depois parecia-me que tinham rostos calmos e encantadores. Provavelmente eram o espelho da serenidade de uma pessoa ou fantasma que vivia dentro delas.
Elas eram a memória do fogo antigo no interior da terra, da força erosiva dos ventos e da água, dos diferentes climas da terra e dos seres vivos primitivos que com elas se fundiram.
O homem ao observá-las impressionou-se com a sua beleza misteriosa, acreditou que transportavam os segredos do princípio do universo e apaixonou-se por elas. Para quem era aquela mensagem? Era para ele. Logo começou a trabalhá-las para construir casas, castelos e palácios, impregnando-os da sua imaginação criadora, dos seus sentimentos, dos seus sonhos, da sua cultura, dando-lhes vida e criando quadros como os dos pintores famosos. Queria que a sua obra viajasse tempo. Viajou e continuará a viajar.
A torre também construída de pedras semelhantes era circular e tinha várias janelas, algumas alinhadas com o nascer e o pôr-do-sol no início do Verão e do Inverno. Outras eram utilizadas para durante a noite observar o céu. Era importante para os camponeses saberem quando se aproximava a época das sementeiras e das colheitas.
Numa das suas pedras estavam gravadas umas palavras em árabe e um desenho de um homem que observava os astros. Não tinha nenhuma ideia sobre o significado daquelas palavras. Aquela pedra seria de um antigo observatório astronómico.
Estava a ver a realidade ou quase tudo não passava de um mistério?
Então recordei-me do que andava a dizer a bruxa de Urros. Naquele lugar houve um castelo de um mouro, o qual estaria encantado. As pedras daquele castelo eram semelhantes àquelas do palácio de Dom Baldo. O Castelo do mouro desapareceu, sem explicação.
Dom Baldo teria mandado derrubar o castelo, para com as mesmas pedras construir o seu palácio ou castelo. Para isso teria sido necessário chamar o bruxo mais poderoso da região que era o da Torre Dona Chama. Este bruxo tinha poderes para quebrar o encanto das pedras do castelo do mouro para o derrubar e voltar a encantá-las depois da construção do palácio ou castelo de Dom Baldo.
Peritos no assunto, que não são bruxos, dizem que se as pedras não estavam encantadas, o que não podiam comprovar, e eram do castelo derrubado, o mouro trouxe-as do Oriente ou de Marrocos.
Terminava assim a história do castelo do mouro e começava a história do castelo ou palácio de Dom Baldo.
Enquanto observava as paredes saiu da cerca do palácio ou castelo, em forma de meia lua, com umas portas de madeira de pinho, um grupo de pessoas com uma noiva montada a cavalo.
Vinham em direcção ao lugar onde eu estava. À frente um casal, cuja mulher era Dona Albertina e o homem era Dom Baldo, o qual me perguntou, em tom cortês, o que estava ali a fazer. Respondi-lhe que estava ver o belo palácio ou castelo de Sua Senhoria. Ficou muito contente e agradeceu com bons modos. Depois de pensar um pouco acrescentou que ele era Dom Baldo ou Fidalgo e que Sua Senhoria era só a sua mulher, de acordo com as regras da nobreza. Creio que as regras da nobreza ensinam que os fidalgos se podem tratar também por Senhoria e suas mulheres por Donas.
Em particular perguntei-lhe sobre as características dos salteadores que o tinham ferido e roubado, para procurá-los e levá-los à Justiça. Respondeu-me que naquele momento não tinha tempo para isso e que esperássemos pelo seu regresso do casamento convidando-nos a participar na boda. Chamou pela Josefa, sua governanta, a quem disse para nos mostrar o palácio e a torre logo que terminasse o trabalho que estava a fazer.
O fidalgo Baldo era um homem alto e magro, com olhos cor de açafrão, com uma barba comprida como se fosse oriental. Levava uma camisa branca, laço, colete, casaco azul, calças brancas, botas pretas de cano alto, um chapéu de aba larga e uma capa negros.
A sua mulher também era alta e magra com rosto de características lusitanas. Levava uma saia comprida de cor bege com barra azul com flores de amendoeira bordadas à mão, um lenço azul na cabeça e uma sombrinha, tudo de acordo com a condição de mulher de fidalgo.
Dom Baldo segurava a rédea do cavalo. Uma colcha de seda feita em Freixo de Espada à Cinta cobria a sela do cavalo. Na colcha estavam bordados bichos da seda, uma amoreira cujas folhas lhes serviam de alimento e um freixo com uma espada à cinta, símbolo daquele povo.
A noiva que ia a cavalo era a sua filha mais velha, de nome Maria. O seu rosto redondo e claro mostrava a sua alegria. Levava um vestido branco, o qual lhe chegava aos pés, uma sombrinha, um ramo de rosas brancas do seu jardim, argolas grandes e um colar, tudo em ouro amarelo. Ia casar-se com um rapaz da Quinta da Estrada, que se chamava Gordete. Um pouco mais atrás vinham os irmãos da noiva, duas raparigas chamadas Clementina e Alcina e um rapaz chamado António.
Esperámos bastante tempo. Entretanto falámos com algumas pessoas sobre a presença ou não dos salteadores naquela zona. Entre elas um peleiro conhecido como Judeu de Lagoaça disse-nos que durante a última noite desconhecidos assaltaram a igreja daquela povoação e a residência do padre, donde roubaram ouro e prata. Constava que se tinham refugiado nas grutas da serra do Palão.
Nisto a Josefa abriu a portão da cerca do palácio e fez-nos sinal para entrarmos. Um jardim, de forma rectangular ocupava a parte central da cerca. Ao meio do jardim havia um espelho de água rectangular, que logo se transformou em redondo. O Botelho não viu nada. Fiquei sem saber se era um espelho de água ou uma ilusão.
O jardim tinha rosas de várias cores e outras flores eram de origem oriental. Estava calor. Depois choveu um pouco. As plantas guardaram uma parte daquela água para irem saciando a sua sede e a outra parte transformaram-na em perfumes que iam espalhando no ar em sinal de agradecimento pela prenda recebida.
Umas gotinhas de água ficaram a pairar no céu e então o sol ao vê-las lançou alegremente os seus raios dourados na sua direcção. Num encontro emocionante manifestaram recíproca paixão, formando um arco-íris para que todo o mundo o soubesse.
Circundado o jardim, estávamos à entrada de um forno ligado a uma adega. Aí duas doceiras do Felgar faziam os bolos do casamento e preparavam os assados de cordeiro. Uma vez dentro deparámos com vários presuntos pendurados do tecto, tábuas com dezenas de queijos de ovelha, umas pipas de vinho e bastantes pães de trigo cozidos.
A Josefa encaminhou-nos para a entrada do palácio. Em cima tinha um brasão com os desenhos de uma torre, de abelhas a voar e um ramo de flor de amendoeira. A torre significava riqueza e poder, as abelhas trabalho e o ramo de flor de amendoeira beleza, cortesia, afectividade e nobreza.
A sala de recepção do palácio deixou-me surpreendido com o seu comprimento. Nunca tinha imaginado que houvesse uma sala assim, tendo havido também comentários idênticos do Botelho. A Josefa explicou-nos que se tratava de uma ilusão. Perguntei-lhe se a sala estava encantada. Respondeu-me que era encantadora, mas que não estaria encantada. Tudo resultava do reflexo dos espelhos colocados nas paredes.
À minha frente estava um quadro pintado a óleo cuja pintura representava Dom Baldo e a sua mulher, Dona Albertina. Ele usava traje de fidalgo: botas pretas altas, calças e camisas brancas, casaco e colete azuis, esporas de ouro tipo orientais e plumas no chapéu. Do seu lado direito, numa mesa decorativa, estava uma jarra de flores de amendoeira com abelhas a esvoaçar, símbolos da família. Do seu lado esquerdo estava a Dona Albertina, com traje elegante e de qualidade correspondente ao de mulher de fidalgo.
Depois passámos para a salão do tesouro. Nas paredes havia tapetes decorados com cenas de caça e colecções de espadas e punhais. As espadas eram muito curvas na extremidade. Estas e os punhais tinham os punhos e as bainhas decorados com pedras preciosas embutidas de várias cores, sobretudo de o azul marinho. Apesar de usar espada na minha profissão fiquei impressionado com o poder cortante daquelas que vi na parede. Em algumas vitrinas estavam elmos, esporas e estribos de ouro.
A Josefa pediu-nos para tocar naqueles objectos. Não fomos capazes de o fazer. Era-nos impossível mexer os pés e as mãos. Estávamos tolhidos. Então explicou-nos que aquele tesouro tinha sido encontrado enterrado, dentro de arcas de pele de camelo, na torre do castelo do mouro. Para o retirar foi preciso chamar um mouro ou bruxo da Torre Dona Chama que quebrou o encanto e voltou a encantá-lo naquela sala. Acrescentou que nas paredes do palácio de Dom Baldo residia uma moura e quando as pessoas se aproximam para roubar o tesouro, ela encantava-as deixando-as imobilizadas. Isso já tinha acontecido umas semanas antes com a quadrilha da Serra de Mós. Deu-nos pormenores sobre as características do seu chefe. Era alto e magro, usava calças e camisa rotas, um chapéu de aba larga com alguns buracos e um tapolho na vista direita, fazendo supor que aquela vista estava furada. O tapolho não só tapava o olho direito mas também metade da cara daquele lado. Havia quem afirmasse que ele não tinha qualquer defeito na vista e na cara e que usava o tapolho como disfarce. Por isso chamavam-lhe o Tapolho de Mós.
A Josefa queria mostrar-nos as restantes divisões do palácio, a torre e os seus segredos. Tal não foi possível. Mal acabávamos a visita ao salão do tesouro ouviam-se pessoas a falar na cerca do palácio. Fomos ver, com excepção do Botelho e da filha da Josefa que ficaram a conversar. Era o regresso do casamento. À frente iam os noivos e atrás deles os seus pais, com excepção do pai do noivo que já tinha falecido, os seus familiares e, por último, os convidados não familiares.
A governanta abriu as portas do salão principal e para aí se dirigiu toda a gente. Muitos olhavam para a admirável decoração das paredes e dos tectos e outros para a comida. Ainda não havia ordem, nem para comer, nem para se sentarem. Dom Baldo saudou os convidados e agradeceu-lhes a sua presença. Após ter dado sinal, o grupo musical de Mogadouro iniciou a execução de uma música, dedicada aos noivos, assim se cumprindo a tradição das casas nobres. O grupo musical era composto por quatro elementos: uma cantora, dois músicos de alaúde e um de rabeca.
Dos convidados de fora destacavam-se dois rapazes solteiros de famílias também fidalgas, um chamado Luís que era de Ligares e outro chamado Amílcar que era da Açoreira.
Toda a gente comeu e bebeu do que quis e quanto quis. A noite ia adiantada.
Traçados os planos de busca dos salteadores de acordo com as informações recolhidas e os presságios da lua cheia, rumámos na direcção da floresta do Palão.
Seguimos por uns atalhos com soutos de castanheiros. Ouvíamos o repetido piar das corujas, música agoirenta que nos causava arrepios de medo. Para prevenir a surpresa de qualquer confronto desembainhei a espada e o Botelho por sua iniciativa empunhou a lança. A atmosfera agoirenta adensou-se. O jumento zurrou e o cavalo relinchou. Ocorreu-me a ideia de que também ficaram com medo, depois pareceu-me que comunicavam qualquer coisa com as corujas, mais tarde pensei que animais sem asas não comunicavam com os que as tinham, que comentariam entre si qualquer sinal que vinha de lua cheia e, por último, concluí que nada sabia. Mais adiante lembrei-me de ter lido num livro que na antiguidade havia cavalos alados. Se havia cavalos alados também havia jumentos alados, por uma questão de igualdade. Sendo assim os nossos animais poderiam comunicar com as corujas.
Continuámos a caminhar em alerta máximo. O Botelho ia à frente sem dizer qualquer palavra. De vez em quando fazia exercícios com a lança. Seriam para se treinar ou para libertar a sua ansiedade ou as duas coisas. Os nossos animais de vez em quando paravam repentinamente, espirravam sem estarem constipados, arrebitavam as orelhas, olhavam para os lados e recuavam. Seria um sinal de que nas redondezas havia qualquer coisa estranha e perigosa. Estávamos perto de umas grutas da floresta do Palão. Ouvimos os gritos de um homem que pedia ajuda, e dizia, além de outras coisas, que ali havia ladrões.
Ao sairmos de um pinhal vimos o homem que pedia ajuda a fugir montado num cavalo e atrás dele iam também a cavalo dois supostos bandidos. O Botelho, que ia adiantado, mal viu os salteadores investiu na sua direcção com a lança em posição de os atingir. Imprevistamente o jumento transformou-se em animal alado e passou a correr ou a voar a grande velocidade e com grande ruído.
Fiquei com receio de que o Botelho os trespassasse com a lança. Tivemos sorte porque os supostos bandidos ao verem a sua vida em risco deitaram-se abaixo dos cavalos e logo iniciaram a fuga. De nada lhes valeu. Cercados por nós e pela pessoa que anteriormente estava a ser perseguida renderam-se. Traziam à cinta, cada um, um punhal de lâmina comprida, tendo sido logo desarmados e acorrentados.
Seguidamente o Botelho foi buscar os cavalos que eles traziam, um deles com uns alforges. Perguntámos-lhes se os cavalos eram seus. Responderam que sim. Logo o perseguido afirmou que conhecia bem o cavalo dos alforges e que pertencia ao Fidalgo Baldo. Um deles respondeu que o tinham encontrado abandonado e enquanto não o reclamassem pertencia-lhes, segundo as leis do Reino. Revistados os alforges ali encontrámos ouro que pertenceria a uma Santa e uma salva em prata onde estava escrito: “oferta do povo de Lagoaça ao seu pároco na comemoração dos seus vinte cinco anos de sacerdócio”.
Um dos salteadores era alto e tinha a roupa rota. No chão estava um chapéu roto e um tapolho. Perguntámos-lhes se aqueles objectos eram seus. Responderam que não e que viam muito bem.
Entretanto nasceu o sol. Olhei para o jumento e pude verificar que não tinha asas, não havia nenhumas caídas no chão e estava calmo. Então pus-me a pensar: terei visto na realidade o jumento com asas ou terei pensado que as tinha só porque era muito rápido? Não tinha dúvidas de que vi o jumento com asas. O mesmo foi-me confirmado pelo Botelho, acrescentando que as mesmas desapareceram quando desapareceu o luar. Não havia conhecimento de que os jumentos se transformavam em animais alados com o luar da lua cheia. Haveria outra explicação. Naquela noite tinha dado água ao jumento da que recolhi com um cântaro na fonte da moura, para curar o seu reumatismo. É provável que tivesse virtudes mágicas para o transformar em animal alado, por si, ou com a ajuda dos poderes da lua cheia.
Estávamos prontos para partir quando um pastor de ovelhas se aproximou de nós. Começou por saudar-nos. Depois contou-nos que aquele sítio era muito respeitado, porque nas grutas que estavam à nossa frente moravam os espíritos de uns famosos artistas que há milhares de anos ali viveram.
Foram esses artistas que gravaram animais num rochedo na margem direita do rio Douro, perto da povoação de Mazouco. Algumas dessas gravuras estavam danificadas, restando intacta apenas a de um cavalo.
Havia pessoas que diziam que entre as gravuras danificadas estava um jumento alado e outras afirmavam que não é um jumento, mas um cavalo alado.
Regressámos à Quinta de Dom Baldo, a quem entregámos o seu cavalo, depois de o reconhecer. Era o cavalo que lhe tinham roubado em Vale de Ferreiros.
Comemos dos restos que ficaram do casamento e depois iniciámos o regresso a Torre de Moncorvo.
Com a valentia e grande coragem demonstrados neste caso, o Botelho poderia ver cumprido o seu grande desejo de ser comandante ou governador.
Muitos anos depois faleceram o Fidalgo e sua mulher. O palácio ficou desabitado e começou a degradar-se. Os filhos do fidalgo não queriam viver ali. Não se sabe porque razão.
Algumas pessoas, inimigas daquela família diziam que os herdeiros do Fidalgo não queriam habitar aquele palácio, porque estava encantado e tinham medo dos fantasmas. Isto não está comprovado.
Então Nuno Gomes Lopes, mestre-de-obras, neto de Aníbal Lopes, que foi vizinho e amigo de Dom Baldo, comprou o palácio e mandou restaurá-lo, com um seu projecto e sob a sua direcção, depois de conhecer e respeitar toda a história daquela família, do mouro (que não se sabe com exactidão se era uma pessoa de carne e osso ou um fantasma), do seu castelo, das lendas das mouras encantadas, da mourama e da mouraria, do que diziam os bruxos (dos que falavam verdade e dos mentirosos) e da influência dos astros e das estrelas sobre o modo de viver das pessoas daquele povo. Para executar a obra contratou uns famosos pedreiros de Freixo de Espada à Cinta, conhecidos por Pintados.
O palácio está restaurado, com excepção da torre, e se antes estava encantado, agora mais encantado está. Quando a torre estiver concluída o Nuno poderá usar os títulos de Dom ou de Fidalgo ou os dois.
Quem olhar para este palácio ficará encantado para sempre."

1 comentário:

  1. Um abraço a quem escreveu tão encantado conto...divinal.
    Luis Gordete(neto de D. Baldo)

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