Aproximámo-nos de uma
ribeira chamada Vilela, sendo nosso desejo beber da sua água limpa e fresca. Os cágados, que estavam a descansar ao
sol sobre as pedras das margens da ribeira, ao darem conta da nossa presença
submergiram lentamente na água, onde depois nadavam em círculos, provavelmente por
influência dos astros.
Perto dali numa
colina havia um colmeal com colmeias de cortiça, cercado por um muro alto de pedra de xisto, de forma circular, com remates
em lousa salientes para o exterior, semelhantes aos anéis de Saturno, e uma porta
pequena, tudo para proteger as colmeias da acção dos predadores, entre eles os ursos.
As abelhas saíam e
regressavam às colmeias, a grande velocidade, num zumbido permanente, carregadas de néctar e de pólen. Depositado o
produto nos favos da colmeia comiam, repousavam o suficiente para recuperar as
forças e partiam de novo com o mesmo entusiasmo. De vez em quando faziam voos em
círculo, de subida e descida acentuados, cuja finalidade só elas sabiam. Seria
por puro prazer ou para adquirirem treino para contornar os ataques dos abelharucos,
ou os obstáculos que surgiam diariamente. De qualquer modo era um comportamento
espectacular.
A uns cem passos dali
havia um moinho de água. Via o seu rodízio que girava em torno de si próprio com a força da água e lançava-a com
ruído em todas as direcções.
O moleiro, chamado
Gabriel, natural de Fornos, acabava de chegar com duas cargas de trigo.
Resolvi parar um pouco.
O meu cavalo e o
jumento do Botelho, esfomeados, comiam a erva fresca das margens da ribeira.
Sentei-me à sombra de
um olmo perto de uma laranjeira com laranjas maduras. Chamei pelo Botelho para trazer os alforges a fim de ali comermos as provisões que tínhamos. Uma pedra servia de mesa e duas outras de bancos.
Com a comida bebemos um vinho tinto produzido na região da Vilariça. Era de tão
alta qualidade que depois de o beber via as serras andarem à nossa volta, a ribeira a
correr em sentido contrário, o moinho inclinado quase a cair em cima do moleiro e o colmeal
e a cerca no ar a girarem à volta de si próprios quase em cima de nós. Passados uns
instantes já tinha dúvidas se era o colmeal que girava quase em cima de nós ou se era a
lua cheia. Só o vinho não poderia gerar uma situação tão fantástica. Talvez fosse
qualquer interferência da luz do altar romano ou de algum espírito da necrópole de São
Cristóvão.
Deitei-me na erva e
logo adormeci. Tive um sonho surpreendente.
Encontrei-me no outro
mundo tal como sou, vivo, sem saber como lá cheguei.
Então estava sentado
à sombra fresca de uma árvore com uma copa de folhas azuis e frutos perfumados e de boa pinta, muito parecidos com as
laranjas de Mazouco. A copa da árvore fez-me recordar a abóbada da Igreja de
Carviçais.
Tinha alguma fome e
apetecia-me comer aqueles frutos. Porém, não toquei em nenhum, porque tive a premonição de que não era permitido a
ninguém comê-los sem merecê-los. Eu merecia comê-los? Não sabia. Tinha dúvidas.
Pior do que isso, a serpente maldita poderia ter-se transformado naqueles frutos.
Entretanto começou a
chover. Não tinha capote. Pensei que ia molhar-me. Surpreendentemente as folhas da árvore beberam toda a chuva,
sem cair uma gota sobre mim, nem sobre o solo. Ou seria uma chuva que pela sua
natureza não molha, nesse aspecto muito diferente daquela que caía na terra.
A luz que surgiu era tão
clara e afectuosa que eu já não necessitava de mais nada. Então, ou me esqueci da fome ou me passou. Talvez me tenha
passado, porque quando estamos felizes quase não necessitamos de comer e de beber.
Tudo isto me pareceu
fantástico em comparação com aquilo que se passava e ainda se passa na Terra.
À minha frente
passava um rio que levava água abundante, a qual era mais pura que aquela que nasce na fonte Castalia em Monte Parnasso ,
onde se purificavam e creio que ainda se purificam as ninfas antes de se acercarem de Apolo
para tocarem canções.
Pus-me a observar um
cenário belíssimo que se encontrava naquele rio, na margem contrária àquela em que eu me encontrava.
Um homem que tinha
aspecto de santo estava sentado num trono dourado, fazendo de juiz (ou era juiz de profissão). Segurava numa das suas mãos
uma balança de dois pratos e na outra uma espada. À sua frente estava um livro aberto.
Donde me encontrava não podia ler o que estava lá escrito. Apesar disso, acreditei
que ali estivessem escritas as leis do céu ou pelo menos as de Moisés.
Pelo rio de que falei
iam uns barcos à vela carregados de gente em direcção àquele trono, devagar, porque o vento era pouco. Os barcos eram
parecidos com aqueles que navegavam no rio Douro no lugar da Congida.
As pessoas
acercavam-se do trono. Esperavam que o juiz as chamasse, umas sentadas e outras de pé, porque as cadeiras não eram
suficientes para todas. Algumas delas tinham os rostos tranquilos e outras mostravam-se
apavoradas. Daquelas pessoas só conhecia uma, o Horácio de Mazouco.
Acordei bruscamente
com os gritos de um homem e o ladrar de um cão que vinham dos lados do moinho. Era o moleiro que se queixava do meu
cavalo e do jumento do Botelho, porque lhe tinham comido umas verduras na sua horta
e duas quartas de cereal que se encontravam em frente do moinho. Com um pau e a ajuda
de um cão afugentava os nossos animais. O jumento fugia como se não tivesse
reumatismo.
Disse-lhe que
tínhamos o direito de aboletamento, dada a nossa profissão, coisa que ele não sabia o que era e tive que lhe explicar. Não iríamos
utilizar este nosso direito. Prometi-lhe que mais tarde lhe daria três quartas de cereal
para pagar os prejuízos. Além disso, faríamos de conta que não sabíamos que o seu cão não
tinha licença.
Censurei o Botelho
por, em vez de guardar os nossos animais e vigiar os nossos inimigos, ter adormecido. De facto, segundo as regras da
nossa profissão, quando o comandante dorme o ajudante deve estar vigilante para todas
a eventualidades e, no nosso caso, para a aproximação dos salteadores.
Respondeu-me que
aquele vinho era demasiado forte para beber ao almoço.
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